Rodrigo Toniol
“Se é permitido ensinar religiões afro-brasileiras, por que resistir à Bíblia?” A pergunta foi feita pela vereadora Flávia Borja (DC), ao defender o projeto aprovado nesta semana pela Câmara Municipal de Belo Horizonte. O que parece um movimento local é, na verdade, parte de uma cruzada legislativa que já se espalha por várias partes do país.
A proposta da vereadora autoriza o uso da Bíblia como material didático complementar nas escolas públicas da cidade. Seu argumento é que rejeitar o texto cristão seria aplicar uma “seletividade ideológica” que fere o princípio da laicidade.
Em diversos estados —como Rio Grande do Norte, Mato Grosso do Sul, Amazonas, Rondônia e Rio de Janeiro— leis estaduais tentaram impor a presença da Bíblia nas escolas ou bibliotecas públicas, sob a justificativa de que o livro é um “patrimônio cultural”. A alegação é que a proposta não visa a evangelizar, mas reconhecer a Bíblia como um pilar cultural do Ocidente.
É inegável o papel central da Bíblia na história do Ocidente. Mas, se o objetivo é destacar obras fundamentais da nossa civilização, por que restringir o foco apenas à Bíblia? Por que não incluir, no mesmo projeto, obras como “A Odisseia”, “A República de Platão”, “Os Lusíadas” ou até os “Discursos de Rousseau”? Teriam os vereadores mineiros se investido da missão de definir os pilares da civilização ocidental?
O que estamos assistindo, na verdade, é a implementação de uma política educacional disfarçada de zelo pelo patrimônio cultural, mas que, na prática, promove uma única doutrina religiosa.
A comparação com a Lei 10.639/2003 —que tornou obrigatório o ensino da história e cultura afro-brasileira e africana— é, no entanto, equivocada. A lei não prevê o ensino religioso, tampouco a promoção de cultos afro nas escolas. A dimensão religiosa é apenas um de seus componentes. A lei busca reparar uma ausência histórica no currículo escolar e valorizar expressões culturais sistematicamente marginalizadas.
O projeto mineiro, ao contrário, tenta se disfarçar de valorização cultural para instituir, por vias enviesadas, um privilégio religioso. Sob o pretexto de reconhecer a Bíblia como “patrimônio cultural”, abre-se caminho para introduzir um projeto de moral cristã nas escolas públicas. A manobra não é nova e já foi barrada em outros estados.
Em 2021, o STF (Supremo Tribunal Federal) considerou inconstitucionais leis semelhantes no Amazonas e em Mato Grosso do Sul. A justificativa foi clara: a educação pública não pode ser instrumentalizada para privilegiar uma religião específica, em detrimento de outras. A laicidade do Estado, nesse caso, funciona como escudo protetivo de uma sociedade plural.
O argumento da “Bíblia como cultura” reaparece em outras frentes. O caso do Museu Nacional da Bíblia, em Brasília, é exemplar. Como mostrou o historiador da USP Marcelo Rede, o projeto, embora apresentado como “espaço cultural”, não possui acervo, curadoria ou proposta pedagógica.
O que se ergue é um monumento confessional, patrocinado por dinheiro público, para celebrar uma doutrina religiosa específica. Trata-se de um símbolo do que está por trás de iniciativas como a de Belo Horizonte: a tentativa de consagrar a Bíblia como centro gravitacional da identidade nacional.
O movimento ecoa o avanço do nacionalismo cristão nos Estados Unidos, onde religião e política se fundem para apresentar uma visão de país essencialmente cristão. Nessa perspectiva, leis, instituições e valores públicos devem refletir uma doutrina religiosa específica.
Isso não significa negar a importância histórica e cultural da Bíblia. Ela é, sem dúvida, um texto central na formação do Ocidente. Mas é justamente por isso que seu estudo crítico pode ter lugar nas escolas, como objeto de análise —e não de devoção.
O que não se pode admitir é o uso do sistema educacional para legitimar valores morais de uma única tradição religiosa. Em uma sociedade plural e democrática, a escola pública deve ser um espaço de inclusão, respeito à diversidade e ensino crítico. Forçar a leitura da Bíblia, mesmo sob o disfarce de “cultura”, é uma violação desse princípio.