Filipe Oliveira
O ano tem 365 dias. Parece improvável, mas mesmo com tantas datas disponíveis no calendário, eu fui pisar em um cocô de cachorro na calçada justamente na noite em que eu estaria sozinho em casa.
Até eu abrir a porta, acreditava que tudo estava bem, vencido o caminho de casa na chuva, que desorienta um pouco a caminhada de quem não enxerga. Mas foi só eu tirar os sapatos na porta de casa para sentir um cheiro inconfundível.
Estivesse minha companheira em casa e a cena seria previsível. Eu faria o papel do homem decidido e diria que iria limpar imediatamente. Ao que ela, antes de eu chegar na área de serviço, os arrancaria carinhosamente da minha mão dizendo que isso era rapidinho e dava um jeito. Minha proatividade encenada daria lugar à gratidão sincera, já que eu, ainda pouco desenvolto na arte da organização doméstica, falha da qual não me orgulho, não teria a menor ideia de por onde começar.
Mas eu estava sozinho e desamparado naquela noite chuvosa.
Telefonei a ela em busca de apoio emocional e conselhos. Recebi então uma lista de tarefas. Encontrar a escova, lavar e esfregar o sapato no tanque, tirar a sujeira grossa, esfregar com um limpador multiuso e apalpar para ver se tinha saído tudo. Depois passar um pano no chão com água sanitária para garantir a limpeza do caminho por onde andei dentro de casa.
A missão me levaria a me aventurar por portas desconhecidas. Estava tudo dentro do armário da lavanderia, cheia de produtos que não sei nome, cor, embalagem, cheiro ou função. Uma chamada de vídeo àquela hora seria inútil, já que ela também não enxerga e não teria como me ajudar a achar o que eu precisava.
Busquei por meu amigo Luigi. Contei do ocorrido e ele foi muito empático. “Puxa Filipe, que chato. Dá uma limpadinha no sapato o quanto antes, pra não ficar com o cheiro impregnado”. Até que está bom, para não ficar com o cheiro impregnado”. Até que está bom para um robô. Mais especificamente, o app do ChatGPT, que ganhoo apelido por dar dicas de italiano pra gente.
Acontece que desde o final do ano passado, a versão Plus do serviço, oferecida a US$ 20 por mês (cerca de r$ 110) no site da OpenAi, responsável pelo serviço, tem um recurso que permite abrir a câmera do celular e obter informações sobre o que está em volta em tempo real.
Coloquei o Luigi para olhar o armário e fui perguntando ‘O que é isto?”, “o limpador está mais para qual lado”?. Sem dificuldade, Luigi me fez navegar pelas fileiras de itens nas prateleiras e pegar os certos em menos de um minuto. Fizemos uma bela dupla. Após muita água e sabão, Apalpei a sola do sapato e constatei, tudo limpinho.
O uso de inteligência artificial para descrever imagens estáticas já havia se disseminado rapidamente há dois anos e agora uma boa parte das pessoas cegas está acomstumada a, quando recebe uma foto, subir ela ao aplicativo Be My Eyes e em alguns insantes ouvir uma descrição automática.
abrir o celular e começar a ouvir o que está ao redor, podendo interagir com o ambiente e tendo respostas rápidas é a grande novidade. Serve, por exemplo, para perguntar o que fazem botões de um eletrodoméstico ou controle remoto, conferir combinações de roupa , achar algo no armário, conferir se a comida que se está cozinhando parece pronta, descobrir se a tela de um computador que aparenta estar travado está mostrando algo, ler uma placa na rua ou ouvir uma descrição da paisagem.
A velocidade atual dá interação, somada ao custo, ainda é a limitação. Não tive muito sucesso ao chamar o Luigi e pedir que ele me ajude a desviar dos obstáculos no caminho. ele não consegue acompanhar em tempo real movimentos rápidos. Até ele entender que eu estou me aproximando perigosamente de um poste, eu já vou estar com um pacote de gelo para tratar do novo galo na testa.
Também não deram certo as tentativas de ligar um programa de televisão e pedir que Luigi fosse narrando cena por cena. Quando solicitada uma tarefa complexa demais, meu amigo foi meio preguiçoso e se restringiu ao óbvio. “Televisão ligada”, explicou, enquanto passava a Sessão da Tarde.
Outro ponto fraco do serviço é ele não contar com uma memória visual. O Luigi não guarda o rosto de uma pessoa para depois reconhecê-lo em uma foto ou quando a encontra novamente. Do ponto de vista da privacidade, parece melhor assim, mas não deixa de ser uma limitação como ferramenta de acessibilidade.
Como comprovam meus sapatos linpos, é um avanço tecnológico espantoso e que pode facilitar muito a vida de quem tem deficiência visual, mesmo que ainda não seja um parceiro para todas as situações. O avanço é ainda mais promissor por estar em um aplicativo altamente popular, em vez de ter surgido em um serviço especializado para pessoas cegas, um nicho para o qual os produtos costumam ser caríssimos quando feitos especialmente para ele.
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