Walter Porto
“Não vou conseguir dar um depoimento, uma coisa seca sobre mim mesma”, disse Conceição Evaristo à jornalista Yasmin Santos, que preparava um livro sobre a vida dela. “Falar da minha origem, da minha família, da favela, coisas que inspiram minha criação literária, faz com que eu navegue pela ficção. Trazer à memória é fazer ficção.”
Uma declaração como essa, que faria uma fila de biógrafos terem arrepios dos pés à cabeça, foi recebida com naturalidade por Santos. Ela respondeu que, quando se trata de lembrar, autoficção era inevitável.
A autora de “Ponciá Vicêncio” seguiu então mais à vontade para desfiar causos de sua infância em Minas Gerais, de seus trabalhos domésticos ainda criança, de sua mudança ao Rio de Janeiro para dar aulas, do casamento com o grande amor de quem ficou viúva, de seus primeiros momentos tateando a ideia de escrever algo para ser publicado.
As histórias compõem “Conceição Evaristo: Voz Insubmissa”, lançado agora pela Coleção Brasileiras, da Rosa dos Tempos, um trabalho coordenado por Joselia Aguiar e que se aproxima de outro lançamento relevante desse mês da Consciência Negra.
“Lélia Gonzalez: Um Retrato”, da filósofa e ativista Sueli Carneiro, também abraça o desafio de delinear uma vida referencial da negritude brasileira empenhada em reforçar mais o coletivo que o individual.
As duas obras se afastam da pretensão de ser uma biografia exaustiva, se definindo como um breve perfil biográfico e abrindo margem para leituras mais subjetivas, em que as autoras não se furtam a inserir suas próprias histórias ao lado das mulheres retratadas.
“Como é um ensaio um pouco mais livre, tomei como matéria-prima a memória da Conceição”, afirma Santos, jornalista carioca que também trabalha como editora na Companhia das Letras, ressaltando que isso não significa o abandono da objetividade.
“É claro que recorro a arquivos, cartas e diários, e em alguns momentos confronto o que Conceição me conta. Mas como ela trabalha com ficção, me senti confortável para deixar que entrasse por esses caminhos da memória que podem levar a alguns becos.”
Como disse a escritora durante as entrevistas, esse exercício de lembrar o passado é de onde ela “tira o sumo de sua escrita”. Mas outra frase também assombrou Santos no processo —Conceição sempre costumou martelar o mantra “leiam meus livros, não minha biografia”.
Isso porque receava ser posta numa vitrine que destacasse sua figura em vez de seu projeto estético. A solução achada pela jornalista foi polvilhar o livro com trechos de obras como “Becos da Memória” e “Histórias de Leves Enganos e Parecenças”, para ressaltar que “o ouro está ali”.
Vida e obra são coisas difíceis de dissociar numa autora cujo projeto literário se baseia no conceito da “escrevivência”. É por isso que a biógrafa também resolve dedicar algumas páginas a “escreviver” sobre sua própria família, destacando paralelos entre sua avó, Alayde, e a mãe de Conceição, Joana.
Talvez o diferencial do livro, diz Santos, seja esse caráter de conversa intergeracional —ela tem 26 anos, e Conceição completa seu 78º aniversário nesta sexta (29).
É um aspecto que surge também no livro de Carneiro, mesmo com a diferença de meros 15 anos entre ela e Gonzalez, que militaram juntas no movimento feminista negro até a morte da segunda em 1994.
“Sueli é alguém que conheceu Lélia vindo de uma geração posterior e, assim, consegue oferecer uma visão nuançada, multifacetada de quem ela era”, diz Fernanda Silva e Sousa, que editou o livro na Zahar —Carneiro preferiu não dar entrevista, mas retrata Gonzalez numa posição de reverência.
Seu livro permite entrever uma pessoa que avançou conceitos como a interseccionalidade e a “língua pretuguesa” —elaborando uma visão global sobre os efeitos do racismo, do machismo e do colonialismo—, mergulhou na militância partidária na redemocratização e se transformou em referência para gente como a americana Angela Davis.
Gonzalez tirava lições públicas de sua história privada —ela se projetou ao cenário internacional a partir de uma família pobre de 18 irmãos em Belo Horizonte e refletiu sobre a adoção do estilo black power no seu próprio visual como meio de transformar sua imagem em instrumento de mobilização política.
Essa inserção do pessoal no intelectual integra tanto o trabalho das biografadas quanto o das autoras de seus perfis. “É uma escrita negra que reivindica essa subjetividade”, afirma Silva e Sousa. “É algo que as pessoas brancas não costumam fazer —elas inserem suas vidas num coletivo.”
São vários os trechos de “Voz Insubmissa” que mostram Conceição sendo a primeira pessoa negra reconhecida com algum prêmio ou homenagem e repisando a ideia de que o mais importante é que aquela distinção não fosse restrita só a ela, mas a primeira aberta a muitas mulheres negras.
“Tem grandes biografias com os feitos de personagens masculinos, e muitas vezes a escrita de personagens femininas é feita por homens também”, aponta Santos. “Não contesto isso, há ótimos trabalhos. Mas é desigual o espaço de autoras escrevendo sobre mulheres que foram importantes.”
“Quando oferecemos ao público esses encontros entre mulheres, alimentamos um novo olhar sobre essas personagens, que as complexifica. É um ponto de vista para pensar uma nova subjetividade.”