Jairo Malta
Desceu dois pontos antes do habitual. Não era pelo trânsito nem pelo clima. Era pelo esgotamento. Corpo travado, mente disparada, camisa suada antes das nove da manhã. O ônibus lotado, abafado, virou cenário comum — mas pra ele, naquele dia, era o limite. Sentiu que não ia dar conta. Que não importava quantas tarefas cumprisse, quantas entregas fizesse, quantos “bom dia” sorridentes soltasse: alguma coisa dentro já tinha quebrado. E ainda assim, seguiu.
Burnout é o nome técnico. Mas na quebrada, isso não tem diagnóstico. Tem apelido: “fraqueza”, “preguiça”, “corpo mole”. O que a Organização Mundial da Saúde reconhece como síndrome ligada ao excesso de trabalho e esgotamento emocional, nas periferias é tratado como falta de vontade. A saúde mental da população negra e pobre continua sendo ignorada ou romantizada. Porque quem vem da escassez não tem o direito de recusar nada — nem quando o custo é o próprio corpo.
Segundo dados da OPAS, o Brasil tem a maior taxa de ansiedade da América Latina. Em 2016, o Ministério da Saúde mostrou que 6 em cada 10 adolescentes que cometeram suicídio eram negros. Em Belém (PA), uma pesquisa com jovens de bairros periféricos mostrou que o medo da violência limita o lazer, afeta o sono e compromete a saúde emocional. Já em Embu (SP), mulheres diagnosticadas com depressão relataram que a doença surgiu como resposta direta ao cotidiano de luto, violência doméstica, desemprego e abandono. A depressão, nesses contextos, não é um colapso químico interno — é o nome possível pra uma vida sem descanso.
Mesmo assim, o sistema responde com protocolo e indiferença. CAPS sem estrutura, consulta de cinco minutos, medicação padronizada. A escuta é rasa, quando existe. E quando a ajuda chega, já vem tarde — depois que a mente desorganizou, depois que o corpo gritou. A precariedade não é só do serviço, é do olhar. A psiquiatria descolada do território não entende que o sofrimento é atravessado por raça, classe e violência simbólica. Tratar sem entender o contexto é insistir na omissão.
E pra quem rompe alguma bolha, a cobrança é ainda maior. Surge a síndrome do impostor. Um fantasma que persegue quem chegou onde ninguém esperava. Um medo de não estar à altura, de ser desmascarado, de tropeçar e perder tudo. A cada espaço conquistado, vem junto a tensão: “até quando vão me deixar aqui?”. O esforço pra parecer preparado o tempo todo esgota. Representar, performar, sustentar — tudo isso adoece. E ninguém vê.
A favela adoece em silêncio. Porque parar é perder renda, atrasar entrega, decepcionar os seus. Porque mostrar cansaço é correr o risco de ser substituído. Porque falar de saúde mental é privilégio de quem pode pausar. Então o corpo insiste. Segue. Produz. Até quebrar. O burnout na periferia não é excesso de reuniões no Zoom. É correr atrás de tudo o tempo todo. É nunca se permitir dizer não. É viver como se cada sim fosse o último.
E quando esse colapso acontece, ele não vira manchete. Não mobiliza governo. Não é incluído no orçamento. O sofrimento da população preta e periférica não entra na conta pública. Nem como urgência, nem como investimento. A política de saúde mental ainda é pensada por quem pode descansar. A palavra “merecimento” ainda é dita por quem nunca teve que negociar dignidade pra sobreviver.
Falar de burnout, ansiedade e depressão entre pessoas negras é romper com a lógica do “se quiser, consegue”. É dizer que nem toda escolha é liberdade. Que agarrar toda oportunidade não é mérito — é desespero. E que, no fundo, quando alguém repete que tudo é uma chance, a gente já sabe: essa pessoa nunca teve que escolher entre saúde e salário, entre sanidade e sobrevivência. A gente ouve. E reconhece na hora a cor — e o CEP — de quem disse.
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