21.3 C
Tarauacá
12/05/2025

‘Tudo é oportunidade?’ Eu sei a cor e o CEP de quem falou – 30/04/2025 – Sons da Perifa

Jairo Malta

Desceu dois pontos antes do habitual. Não era pelo trânsito nem pelo clima. Era pelo esgotamento. Corpo travado, mente disparada, camisa suada antes das nove da manhã. O ônibus lotado, abafado, virou cenário comum — mas pra ele, naquele dia, era o limite. Sentiu que não ia dar conta. Que não importava quantas tarefas cumprisse, quantas entregas fizesse, quantos “bom dia” sorridentes soltasse: alguma coisa dentro já tinha quebrado. E ainda assim, seguiu.

Burnout é o nome técnico. Mas na quebrada, isso não tem diagnóstico. Tem apelido: “fraqueza”, “preguiça”, “corpo mole”. O que a Organização Mundial da Saúde reconhece como síndrome ligada ao excesso de trabalho e esgotamento emocional, nas periferias é tratado como falta de vontade. A saúde mental da população negra e pobre continua sendo ignorada ou romantizada. Porque quem vem da escassez não tem o direito de recusar nada — nem quando o custo é o próprio corpo.

Segundo dados da OPAS, o Brasil tem a maior taxa de ansiedade da América Latina. Em 2016, o Ministério da Saúde mostrou que 6 em cada 10 adolescentes que cometeram suicídio eram negros. Em Belém (PA), uma pesquisa com jovens de bairros periféricos mostrou que o medo da violência limita o lazer, afeta o sono e compromete a saúde emocional. Já em Embu (SP), mulheres diagnosticadas com depressão relataram que a doença surgiu como resposta direta ao cotidiano de luto, violência doméstica, desemprego e abandono. A depressão, nesses contextos, não é um colapso químico interno — é o nome possível pra uma vida sem descanso.

Mesmo assim, o sistema responde com protocolo e indiferença. CAPS sem estrutura, consulta de cinco minutos, medicação padronizada. A escuta é rasa, quando existe. E quando a ajuda chega, já vem tarde — depois que a mente desorganizou, depois que o corpo gritou. A precariedade não é só do serviço, é do olhar. A psiquiatria descolada do território não entende que o sofrimento é atravessado por raça, classe e violência simbólica. Tratar sem entender o contexto é insistir na omissão.

E pra quem rompe alguma bolha, a cobrança é ainda maior. Surge a síndrome do impostor. Um fantasma que persegue quem chegou onde ninguém esperava. Um medo de não estar à altura, de ser desmascarado, de tropeçar e perder tudo. A cada espaço conquistado, vem junto a tensão: “até quando vão me deixar aqui?”. O esforço pra parecer preparado o tempo todo esgota. Representar, performar, sustentar — tudo isso adoece. E ninguém vê.

A favela adoece em silêncio. Porque parar é perder renda, atrasar entrega, decepcionar os seus. Porque mostrar cansaço é correr o risco de ser substituído. Porque falar de saúde mental é privilégio de quem pode pausar. Então o corpo insiste. Segue. Produz. Até quebrar. O burnout na periferia não é excesso de reuniões no Zoom. É correr atrás de tudo o tempo todo. É nunca se permitir dizer não. É viver como se cada sim fosse o último.

E quando esse colapso acontece, ele não vira manchete. Não mobiliza governo. Não é incluído no orçamento. O sofrimento da população preta e periférica não entra na conta pública. Nem como urgência, nem como investimento. A política de saúde mental ainda é pensada por quem pode descansar. A palavra “merecimento” ainda é dita por quem nunca teve que negociar dignidade pra sobreviver.

Falar de burnout, ansiedade e depressão entre pessoas negras é romper com a lógica do “se quiser, consegue”. É dizer que nem toda escolha é liberdade. Que agarrar toda oportunidade não é mérito — é desespero. E que, no fundo, quando alguém repete que tudo é uma chance, a gente já sabe: essa pessoa nunca teve que escolher entre saúde e salário, entre sanidade e sobrevivência. A gente ouve. E reconhece na hora a cor — e o CEP — de quem disse.


LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar sete acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.



Fonte: Folha UOL

Recente:

Boletim de Informações

Não deixe de ler: