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02/05/2025

Cartas de Hannah Arendt e Gershom Scholem nos ensinam a dialogar com a diferença – 02/05/2025 – Juliana de Albuquerque

Entre 1939 e 1964, Hannah Arendt e Gershom Scholem trocaram cerca de 141 cartas, entre as quais a mais célebre talvez seja aquela em que, após a leitura de “Eichmann em Jerusalém: Um Relato sobre a Banalidade do Mal” (1963), o historiador do misticismo judaico e professor da Universidade Hebraica acusa a filósofa de falta de amor ao povo judeu (‘ahavat yisrael’).

Scholem afirma que a tese de Arendt sobre a banalidade do mal carece de seriedade. Ele também discorda da maneira como a amiga julga a atuação das lideranças judaicas durante a guerra e argumenta que muitos dos conselhos judaicos eram compostos por gente perfeitamente comum que se viu obrigada a tomar decisões terríveis em circunstâncias extremas pelas quais nem ele, nem Arendt tiveram que passar.

A principal crítica de Scholem, no entanto, talvez se refira ao tom de irreverência da amiga ao escrever sobre o julgamento de Eichmann. Pois, em se tratando de uma ocasião tão grave como aquela, ele esperava que Arendt tivesse se portado com um pouco mais do que ele chamou de “Herzenstakt” (“tato do coração”).

Arendt não deixa barato e responde Scholem à altura, afirmando, entre outras coisas, que ser judia pertence aos fatos incontestáveis da sua vida, mas que ela nunca se sentiu motivada por amor a um povo ou a uma coletividade: “Eu amo realmente ‘apenas’ os meus amigos e o único amor que eu conheço e em que eu acredito é o amor por pessoas”.

Arendt e Scholem se tornaram amigos em 1938, por intermédio do filósofo e ensaísta Walter Benjamin, que, assim como Arendt e tantos outros refugiados, vivia uma existência precária em Paris, aguardando uma oportunidade segura de deixar a Europa.

Scholem foi responsável pela preservação do manuscrito de Arendt sobre a vida da escritora alemã Rahel Varnhagen e foi através de Arendt que ele tomou conhecimento da morte de Benjamin.

Durante o pós-guerra, Scholem e Arendt trabalharam em uma comissão para o resgate de tesouros culturais judaicos que haviam sido tomados pelos nazistas, bem como reuniram esforços para publicar uma coletânea de ensaios de Benjamin em inglês.

Nessa época, Arendt estava recomeçando a vida nos Estados Unidos e trabalhava como editora na Schocken Books, responsável pela publicação de um dos livros mais conhecidos de Scholem: “As Grandes Correntes do Misticismo Judaico” (1941).

Esses e outros temas são abordados na correspondência que Arendt e Scholem mantiveram durante um quarto de século, mas o que realmente chama a atenção do leitor dessas cartas é constatar que sempre existiu entre eles uma enorme diferença de opinião política.

As desavenças entre os dois têm início na década de 1940, com a publicação de “Sionismo Reconsiderado” (1944), ensaio no qual Arendt reflete sobre o que julgava inadequado na política sionista do período.

Scholem então responde ao texto com indignação: “Nunca em meus sonhos pensei que seria mais fácil para mim concordar com Ben-Gurion [primeiro-ministro de Israel] do que com você! […] Considero a orientação política de Ben-Gurion desastrosa, porém, ao mesmo tempo, muito mais nobre […] do que aquela que teríamos caso seguíssemos o seu conselho”.

Diante da agressividade dos comentários de Scholem, não deixa de ser um milagre que a amizade entre eles tenha sobrevivido durante tanto tempo. Pois, naquela ocasião, a própria Arendt admitiu não saber se os dois ainda seriam capazes de se relacionar depois de tamanha orgia de sinceridade.

Independentemente da dúvida, Arendt encerra a sua carta apelando para que Scholem siga o seu exemplo e perceba que “um ser humano é muito mais valioso do que as opiniões que ele sustenta, pela simples razão de que humanos são de fato muito mais do que eles fazem ou pensam.”

O resultado desse apelo é um belíssimo volume de correspondências entre dois dos mais influentes intelectuais do século 20, que oferece ao leitor a oportunidade de refletir sobre o que sempre podemos aprender mesmo com quem pensa diferente da gente.


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Fonte: Folha UOL

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