Sylvia Colombo
Toda distopia carrega traços do mundo real. Com “O Eternauta” não é diferente. A série da Netflix carrega os mortos das ditaduras argentinas.
A série de ficção científica estrelada por Ricardo Darín, baseada na HQ “O Eternauta”, não marcou os argentinos apenas por sua qualidade técnica. Para boa parte do público local, ela toca em uma ferida aberta: a da última ditadura militar e da história pessoal de seu autor, Héctor Germán Oesterheld.
O que para muitos espectadores estrangeiros pode parecer apenas uma distopia gelada ambientada em Buenos Aires, para os argentinos é também um espelho da violência que o país viveu —e de uma família que ousou resistir com palavras e imagens.
Oesterheld não foi apenas o maior roteirista de HQs da Argentina. Foi também pai de quatro filhas, todas desaparecidas entre 1976 e 1978, junto a seus companheiros e dois netos por nascer. Ele próprio desapareceu em 1977, depois de se engajar na guerrilha Montoneros. A única sobrevivente da família foi Elsa Sánchez, sua mulher, que passou a vida buscando respostas e criando dois netos salvos do horror.
No livro “Los Oesterheld”, de Alicia Beltrami e Fernanda Nicolini, essa história é contada em detalhes. Nos anos 1960, os Oesterheld viviam num chalé em Beccar, cercados por livros, desenhos e longas conversas sobre arte, literatura e política.
As quatro filhas de Héctor cresceram num ambiente intelectualmente fértil, em que se discutia desde quadrinhos até revoluções. Essa casa viva e criativa se transformaria também num ponto de ebulição política: as meninas se engajaram na militância estudantil e social, e o próprio Héctor, encantado com a paixão e os argumentos das filhas, acabou se envolvendo com os montoneros. Sua escuta atenta e seu idealismo o levaram da ficção ao front ideológico, num movimento que selaria o destino de toda a família.
Veio, porém, a repressão. Levou primeiro uma das meninas, depois outra, até que as quatro desapareceram. Héctor foi sequestrado em 1977, após anos vivendo na clandestinidade. Um dos netos, Martín, passou por um centro de tortura, mas sobreviveu.
Na clandestinidade, Oesterheld escreveu uma segunda versão de “O Eternauta”, ainda mais sombria e politizada. Na nova trama, a protagonista leva o nome de guerra de sua filha assassinada, Maria. Se antes a história falava de uma nevasca tóxica e de um herói coletivo que resiste a uma invasão invisível, agora ela passa a expor o luto. Como se, diante da impossibilidade de enterrar suas filhas, o pai as resgatasse em forma de personagem.
“O Eternauta” resgata algo essencial para os argentinos: a capacidade de imaginar o futuro. Em tempos de invernos simbólicos —como os que vivem hoje sob um governo que despreza a memória e sabota políticas de direitos humanos—, esse exercício de ficção vira também um gesto de resistência. A narrativa de um país congelado, tomado por uma força invisível, ecoa como uma metáfora cruel e como advertência: o apagamento da história começa com a censura, mas triunfa no esquecimento.
Não é à toa que as Avós da Praça de Maio retomaram essa ideia com potência: “Você está assistindo ‘O Eternauta’? Então talvez seja hora de procurar sua verdadeira identidade.” Com ela, reacende-se a busca pelos netos e netas desaparecidos —inclusive os da família Oesterheld.
Pode ser que alguém que esteja assistindo à série e tem dúvidas sobre sua origem decida buscar a entidade e descubra ser mais um neto recuperado, entre os mais de 500 que foram roubados.
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