“O momento em que morre um papa é o momento em que a grande mídia mais se volta para a Igreja Católica. Se você quiser evitar o escândalo, a rivalidade (ou, na língua comum, passar raiva, sentir-se injustiçado), melhor não ler. (…) Este é o melhor momento para passar longe dos grandes veículos, que na melhor das hipóteses nos tratarão com paternalismo e condescendência.”
A recomendação foi feita no Instagram pelo tradutor e professor Pedro Sette-Câmara, que é católico. Não é fácil contradizê-lo.
Coberturas complexas como as da morte do papa Francisco e da escolha de Leão 14 são tão fundamentais quanto potencialmente irritantes. A ubiquidade do assunto e a necessidade de atrair e multiplicar os cliques da audiência permitem que quase tudo se diga sobre o tema e muito pouco disso seja realmente relevante.
Se há um alto custo para a paciência dos leitores, o peso para os jornalistas não é muito menor. Redações laicas e sobrecarregadas lançam olhares apenas bissextos para a Igreja, cuja dinâmica interna é críptica por natureza. O resultado é complicado.
“Não tá bom não, Folha”, queixou-se um leitor ainda na semana da morte de Francisco. “Passando pelas 3 milhões de matérias sobre o papa, duas coisas são constantes: os títulos repetindo o mantra do ‘papa transformador’ com variações ‘progressista’, ‘mudou a igreja’, ‘perdoou’, ‘acolheu’, ‘dialogou’ etc… São sempre platitudes. Mas o que ele de fato fez?”
O fascínio pelo ritual, o momento de caos ideológico, as mudanças na demografia religiosa e a popularidade de Francisco fizeram da sucessão na Santa Sé um evento de torcidas. Mas é preciso não esquecer que é da milenar Igreja Católica que se trata. O conteúdo editorial priorizou questionamentos que animam o mundo secular, como ordenação de mulheres e casamento LGBTQIA+, mas cujo andamento eclesiástico vai em outro passo.
Um aspecto dessa desconexão se manifestou de maneira peculiar nas “listas de papáveis”. Não chega a ser surpresa que o nome de Robert Prevost não integrasse a lista apresentada pela Folha. O rol de candidatos e de suas opiniões sobre “temas-chave” da Igreja era baseado no site do jornalista Edward Pentin com um nome que soava oficial, The College of Cardinals Report, ou relatório do colégio dos cardeais. Só faltou especificar do que se tratava a iniciativa, também focada em questões “progressistas”, mas com sinal inverso.
A CNN cuidava de informar que o site pertencia a “grupos que se opõem profundamente ao pontificado de Francisco” e deixava claro que o relatório era “uma tentativa de influenciar o conclave”. No obituário de Francisco, Pentin descreve um “pontificado tumultuado e desagregador”.
Ainda que isso não necessariamente invalidasse os dados da lista, seria elementar evidenciar seus vieses. Olhando muito para um lado só, o jornal deixou passar também um perfil de Robert Prevost que o The New York Times publicara seis dias antes de sua escolha como sumo pontífice. O Globo logo tratou de dá-lo (e o atualizou quando saiu o resultado).
Havia, ainda, uma previsão certa nas apostas dos papáveis. Era a de Steve Bannon, o ideólogo do trumpismo que chamou a mídia de “burra“. Na sexta (9), a Folha deu uma notinha sobre o fato de ele ter qualificado a escolha de Prevost como a “pior possível”.
“Bannon havia previsto a eleição de Prevost ao cargo de bispo de Roma uma semana atrás, quando disse ao jornalista britânico Piers Morgan que o bispo americano naturalizado peruano seria a escolha das ‘forças ocultas’ que comandariam a Igreja Católica com o objetivo de ‘aprofundar o globalismo’.”
Seu efeito potencial na ultradireita americana, já desgostosa desde que Jorge Mario Bergoglio virou Francisco, e por tabela nos bolsonaristas brasileiros não deveria ser subestimado.
A obsessão, não só da Folha mas muito forte na Folha, com a ideia de uma bússola de “progressismo” papal nubla a cobertura. Ao falar com cardeais brasileiros, o jornal destacou o testemunho de que Leão 14 estaria “aberto a debater papel de mulheres e bênção a homossexuais, mas com cautela”. O arcebispo de Manaus, dom Leonardo Steiner, teria dito: “Tenho certeza de que o papa Leão não vai tolher o diálogo. Pelo contrário”.
Já o presidente da CNBB afirmava, no relato do jornal, que “a Igreja sempre deu a bênção a quem se aproxima pedindo a bênção. A bênção não é sinônimo de sacramento”. A chave estava no “não é sinônimo”, mas para o jornal o tom não era “assertivo”.
Há questões formais menores. Uma leitora reclamou do fato de a Folha grafar “Leão 14” em vez de “Leão XIV”, mas o uso de algarismos romanos é proibido pelo Manual da Redação desde ao menos João Paulo 2º. Outro leitor achou preguiçosa a manchete “Leão 14, 1° papa dos EUA”. Mas aqui também é preciso fazer uma concessão ao jornal: eventos históricos costumam ganhar enunciados enxutos.
Aos poucos, a cobertura novamente se esvai como a fumaça da chaminé da Capela Sistina —para retornar de supetão sabe-se lá quando.
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