Victória Pacheco
Cinco anos depois de abandonar o cigarro, Melissa Medeiros, 53, percebeu que algo não ia bem com a saúde: sentia dificuldades para engolir, tinha o sono interrompido por uma tosse seca, e sua voz oscilava, às vezes desaparecendo por completo.
Assim que começaram esses sintomas, em 2009, a catarinense procurou um otorrinolaringologista. O médico identificou lesão na prega vocal esquerda e a encaminhou para um cirurgião. O especialista, no entanto, assegurou que aquilo não era nada demais.
Insatisfeita com a resposta, Melissa trocou de profissional. A história se repetiu. Mais de um ano se passou até que, enfim, fosse submetida a uma tomografia, quando, cansada de ouvir que estava tudo sob controle, exigiu uma investigação mais detalhada, a contragosto do médico.
O exame revelou um câncer de laringe em estado avançado. “Meu diagnóstico foi atrasado pela negligência e pela falta de atitude e de conhecimento dos médicos”, afirma ela, cujo atendimento ocorreu na rede privada.
“O chão se abriu debaixo de meus pés. Fora a vontade de processar o médico pela falta de atenção ao que poderia ser o início de um câncer há um ano e meio. Isso nunca esteve no radar dele.”
Melissa precisou passar por uma laringectomia total, na qual teve laringe e pregas vocais removidas. Depois, foi submetida a uma traqueostomia, que criou uma abertura na traqueia para que o ar chegasse diretamente aos pulmões.
Ela sente que sua identidade, inclusive profissional, sumiu junto à voz. “Perdi minha força motriz de vida e maior ferramenta de trabalho. Tinha uma agência de marketing, onde criava, planejava e executava várias campanhas publicitárias”, relata.
“Amava conversar, cantar e interagir com as pessoas por meio da fala. Sempre fui muito expressiva, meio italiana que ‘parla’ com as mãos e expressões corporais. E aquilo tudo morreu, pelo menos por um tempo.”
A administradora de marketing encontrou apoio no Grupo de Acolhimento a Pacientes de Câncer de Boca e Garganta do Centro de Pesquisas Oncológicas de Florianópolis (SC), que passou a frequentar ao lado do filho, Gabriel Marmentini, 32, então estudante de administração pública.
“Minha mãe se tornou uma pessoa com deficiência, precisou aprender a respirar e a falar de novo. Foi toda uma adaptação a uma sequela permanente”, diz.
“Isso fez com que eu me tornasse um cuidador, mesmo sem saber nada. Fui aprendendo para poder apoiá-la.”
Membros do grupo começaram a discutir a criação de uma associação para reivindicar políticas públicas que melhorassem o atendimento e o tratamento de pessoas na mesma situação.
Em 2015, foi criada formalmente a ACBG Brasil (Associação Brasileira de Câncer de Cabeça e Pescoço), com Melissa no cargo de presidente e Gabriel como diretor-executivo.
Com a missão de “dar voz a quem não tem”, a OSC (organização da sociedade civil) realiza trabalho de advocacy, influenciando políticas públicas. Para isso, articula uma rede nacional de pacientes, familiares, cuidadores e profissionais da saúde, em diálogos com representantes dos poderes Executivo e Legislativo.
Uma das principais vitórias até o momento foi a inclusão da laringe eletrônica na tabela do SUS (Sistema Único de Saúde). O aparelho portátil é colocado na região do pescoço e emite um som contínuo, transformado em fala pelo movimento dos músculos.
A ACBG Brasil também colaborou com a Comissão Especial sobre o Combate ao Câncer no Brasil da Câmara dos Deputados para inserir a reabilitação oncológica na PNPCC (Política Nacional para a Prevenção e Controle do Câncer).
Com isso, passou a ser obrigatório oferecer apoio psicossocial e procedimentos clínicos ou cirúrgicos para corrigir sequelas e mutilações, com o objetivo de reduzir perdas funcionais, desconfortos e sofrimento emocional dos pacientes.
“Antes, não se falava da reabilitação como parte imprescindível no tratamento. Não basta retirar o tumor da perna e deixar a pessoa sem andar. Não basta retirar as mamas, e a mulher ter que ficar anos juntando dinheiro para colocar próteses”, afirma Melissa, que hoje utiliza a laringe eletrônica.
Além disso, a associação ajudou a criar leis que instituíram julho como o Mês Nacional de Combate ao Câncer de Cabeça e Pescoço e o dia 11 de agosto como o Dia Nacional do Laringectomizado.
Em Santa Catarina, ajudou a definir diretrizes estaduais para a reabilitação de pessoas laringectomizadas e traqueostomizadas.
A expectativa é que seja aprovado um protocolo nacional neste ano, conta Gabriel, diretor-executivo também da Politize!, organização de educação política, chancelada pelo Prêmio Empreendedor Social em 2022.
“Pacientes como minha mãe precisam ter uma diretriz nacional, que diga como elas devem ser tratadas, independentemente de onde moram, quem são e quanto ganham. Conduzimos um longo processo de advocacy e acreditamos que estamos na iminência de conquistar isso.”
Outra demanda da ACBG Brasil é uma linha de cuidado para pessoas com mutilações faciais (como as que perderam nariz, olhos, mandíbula e língua), além da capacitação de profissionais e triagem mais eficiente.
“O sistema de saúde pública precisa urgentemente melhorar a regulação das filas dos pacientes por nível de gravidade, passando casos suspeitos na frente para que não se tornem paliativos, o que acontece na maioria dos casos de câncer de cabeça e pescoço no Brasil”, diz Melissa.
Ela enfatiza ainda a necessidade de ampliar o número de centros de referência, especialmente na região Norte. “Muitas pessoas precisam percorrer distâncias absurdas todos os dias e acabam desistindo do tratamento por falta de dinheiro para transporte e alimentação e do desgaste físico e emocional.”