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21/12/2024

No Brasil, falar em defesa da democracia virou jargão – 13/10/2024 – Luiz Felipe Pondé



Por: Luiz Felipe Pondé

Começo com um aviso: como hoje a recepção de conteúdos beira o absurdo no que se refere ao entendimento, devo dizer que profissionais da palavra pública como eu são justamente aqueles mais interessados em regimes democráticos, porque sem a liberdade de expressão e do contraditório não pagamos os nossos boletos —claro, afora aqueles que trabalham somente como um hobby.

Vale dizer que não creio que o absurdo referido acima acerca do entendimento dos conteúdos seja apenas fruto de dificuldades de interpretação. Penso que a maioria desses absurdos é fruto de má-fé mesmo por parte dos receptores das mensagens da mídia.

Claro que há toda uma gama de pessoas que falam nas redes sociais sobre diversos assuntos, principalmente política, que usufruem da liberdade de expressão. Entretanto, afora os profissionais da palavra pública, o restante continuaria a exercer suas funções dentro das cadeias produtivas, mesmo que não existisse liberdade de expressão. Médicos, advogados, engenheiros, técnicos em geral, funcionários públicos —estes nem tanto, devido às baixarias que caracterizam esse universo da dependência direta do Estado e do governo.

Hoje, quando ouço alguém dizer expressões do tipo “em defesa da democracia”, já sei que vem algum truque político ou jurídico. Essa expressão virou um jargão para reduzir o escopo do entendimento das coisas. Numa sociedade como a contemporânea, que tende mesmo à entropia, isso é péssimo. Nunca foi tão evidente a imperfeição do mundo quanto nos últimos 200 anos, devido à farsa de progresso moral ou político que caracteriza esses últimos dois séculos.

No caso do Brasil em especial, país atravessado pela corrupção em todos os níveis, “em defesa da democracia” serve como marcador de truculência institucional facilmente. Usar essa expressão virou um jargão dos piores. Regulação das redes é fácil no caso de Marçal e suas mentiras, principalmente acerca de Boulos. Fácil tirar isso do ar, apesar de que as pessoas que gostam de um candidato não estão nem aí se há alguma verdade entre as versões contraditórias —mesmo que uma dessas versões venha do Judiciário, que é tão parte da solução quanto do problema.

Por exemplo, quem gosta de Bolsonaro pouco se importa se ele, durante a pandemia, foi um irresponsável e ignorante. Pouco importa se ele está ou não metido em corrupção como as rachadinhas —que no mundo dos políticos é o equivalente a batedores de carteira. Por outro lado, amantes de Lula nunca acreditaram na versão de que havia corrupção na Petrobrás ou, se havia, que ele tivesse algo a ver com ela. E hoje, na sua condição de passar de condenado a presidente, ninguém se lembra mais de nada. A democracia é um circo.

E Brasília é o maior picadeiro.

Todos os regimes políticos são, em grande medida, um circo, com palhaços de todos os tipos —os súditos ou cidadãos são os mais numerosos nessa tribo. São muitos os filósofos que apontaram isso ao longo da história. Entretanto, a democracia acrescenta um ingrediente a mais nesse circo: a ideia de que há algum bem puro entre as trapaças e interesses em ganhar a competição por votos, conhecida como eleição. Ou dito de outra forma: a soberania popular é santa.

Sabe-se muito bem da definição procedimental da democracia dada pelo economista Joseph Schumpeter (1883 – 1850), que segue mais ou menos assim: em um regime em que instituições legitimam uma competição por votos, quem ganha manda.

O cerne da soberania popular é, ao mesmo tempo, um dos seus calcanhares de Aquiles no que concerne o procedimento de atribuição dessa soberania. Desde Atenas, sabe-se da intima relação entre democracia, retórica e mentira. Para quem gosta de X, nada em X é falso. Para quem detesta Y, tudo em Y é falso.

Sem dúvida, os debates sem Marçal podem talvez recuperar um tanto de dignidade no seu procedimento, mas a ideia de que alguém abre mão da sua intenção de voto devido a uma apresentação de projetos é uma ilusão —outro elemento do circo na democracia. Mesmo pessoas consideradas mais bem-formadas, em matéria de voto, não se diferenciam do comum dos mortais. Vota em que está a fim, independente de qualquer aspecto racional ou histórico ligado àquele candidato. Este é um dos maiores traços circenses da democracia.

Nada disso deve ser entendido como negação de que não temos saída fora da democracia, pois é o regime menos pior que existe —toda forma de política é ruim. Mas deveria servir para sermos menos ridículos em nossas confissões políticas, sobretudo em se tratando de supostos adultos.


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Fonte: Estadão

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