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24/12/2024

Conselho vota resolução sobre aborto legal para crianças e adolescentes em meio a mobilização bolsonarista; entenda


O Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda) vota, na próxima segunda-feira, uma resolução que define diretrizes para o aborto legal em crianças e adolescentes. A iminência da votação, porém, gerou uma reação de parlamentares bolsonaristas. O documento tem como objetivo garantir atendimento humanizado às vítimas com direito ao procedimento, conforme previsto pela legislação brasileira: gravidez decorrente de violência sexual, risco de vida à gestante e quando o feto apresenta anencefalia.

A resolução, obtida pelo GLOBO, destaca que, identificada a situação de aborto legal e manifestada a vontade de interromper a gravidez, a criança ou adolescente deverá ser encaminhada aos serviços de saúde pelo órgão do Sistema de Garantia dos Direitos da Criança e do Adolescente (SGDCA) para realizar o aborto. “É um direito humano de crianças e adolescentes vítimas de violência sexual, estando diretamente relacionado à proteção de seus direitos à saúde, à vida e à integridade física e psicológica”, diz a minuta.

Nas redes sociais, o deputado federal Nikolas Ferreira (PL-MG) afirmou que vai protocolar uma indicação para que a ministra dos Direitos Humanos, Macaé Evaristo, rejeite a resolução, ameaçando entrar com um mandado de segurança caso ela seja aprovada. Já a deputada Julia Zanatta (PL-SC) apresentou um projeto para alterar a lei que cria o Conanda, proibindo-o de discutir o tema do aborto em crianças e adolescentes. O deputado Gustavo Gayer (PL-GO), por sua vez, apresentou moção de repúdio contra o conselho. Os três parlamentares estão entre os principais apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) no Congresso.

Em 2021, de acordo com o DataSUS, 17.456 bebês nasceram de meninas com menos de 14 anos — em 2023, o número foi de 13.909. Além da violência sexual, as consequências de uma gravidez precoce são graves. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), complicações na gestação e no parto são a segunda principal causa de morte entre meninas de 15 a 19 anos.

A conselheira Maria das Neves, representante da União Brasileira de Mulheres no Conselho Nacional de Direitos Humanos, enfatizou a gravidade dos dados sobre estupro contra crianças e adolescentes.

— Os elevados índices de estupro contra as crianças deve indignar e preocupar toda sociedade. Criança não é mãe, e estuprador não é pai. Obrigar uma criança, vítima de estupro, a levar uma gravidez fruto de um crime brutal é tortura — afirma.

Agressores são familiares ou conhecidos

Dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2023 revelam que o país registrou 83.988 estupros, uma média de um a cada seis minutos. A maioria das vítimas são meninas menores de 13 anos, sendo que 84,7% dos agressores são familiares ou conhecidos.

O documento em análise também propõe diretrizes para evitar a revitimização de crianças e adolescentes, garantindo que a “manifestação de vontade” da gestante seja priorizada, mesmo nos casos de divergência dos pais. Caso a presença dos responsáveis represente risco de “danos físicos, mentais ou sociais”, e se ela tiver capacidade para tomar a decisão, o profissional deve garantir o processo de escuta e que quaisquer outros “tratamentos, devidamente consentidos, sejam realizados sem impedimento”.

— Nem todos os responsáveis ​​legais das vítimas que podem acessar o aborto legal estarão preocupados com a integridade da criança. Às vezes, eles estão mais preocupados em proteger o familiar que agrediu a vítima. Em outros casos, o responsável legal pode estar tão impactado e traumatizado com a violência que não consegue discernir que o que deve ser garantido é que a vítima tenha seu direito à infância e à adolescência garantido — explica a conselheira Romi Bencke, do Conselho Nacional de Direitos Humanos

No caso em que os responsáveis estiverem presentes e divergirem, eles também devem ser acolhidos, mas priorizando o desejo manifestado pela menor de idade. Se a divergência persistir, a recomendação é acionar a Defensoria Pública ou o Ministério Público.

“O exercício regular do poder familiar deve assegurar que crianças e adolescentes não sejam expostos a riscos à sua saúde física, mental e social, e os responsáveis legais devem ser informados sobre a importância de priorizar o melhor interesse da criança e da adolescente”, detalha o documento.

A votação da resolução ocorre após casos recentes que chamaram atenção nacional. Em 2023, uma criança de 10 anos, estuprada pelo tio, precisou entrar escondida em um hospital para realizar o aborto legal devido ao assédio de grupos contrários. Já em julho deste ano, uma menina de 13 anos foi impedida pela Justiça de interromper a gravidez depois que o pai fez um acordo com o estuprador.

O texto também especifica a necessidade de uma escuta especializada das vítimas de violência sexual de forma a não culpabilizá-la ou criminalizá-la, “garantindo-se uma abordagem respeitosa e sensível à proteção de seus direitos, com o objetivo de proporcionar um ambiente seguro em que a criança ou adolescente possa se expressar livremente”.

— Devemos garantir que essas meninas se sintam seguras e confortáveis para pedir ajuda, principalmente quando a violência é praticada por familiar ou por pessoas do seu círculo de convivência — diz a defensora pública Tatiana Fortes, do Núcleo de Promoção e Defesa dos Direitos da Mulher (Nudem) de São Paulo.

Estudos interrompidos por conta da gravidez

De acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD), de 2019 a 2023, 23,1% das mulheres entre 14 e 29 anos interromperam os estudos devido à gravidez, sendo que a evasão escolar entre adolescentes que se tornam mães atinge 47%, contra 5% entre aquelas sem filhos.

“A gravidez em idades precoces restringe as oportunidades e capacidades sociais, econômicas e políticas de crianças e adolescentes, como o direito à educação, limitando sua qualidade de vida e suas possibilidades de integrar, acompanhar e reagir positivamente em meio ao corpo social. Dessa forma, a gravidez na fase inicial de desenvolvimento fisiológico e psicossocial está diretamente ligada à pauperização, à evasão escolar e à interrupção do projeto de vida de meninas e jovens”, informa a resolução.

A conselheira Luisa de Marilac, também do Conselho Nacional de Direitos Humanos, alerta para os principais desafios que orbitam a discussão sobre o aborto:

— Um dos grandes desafios é que o princípio democrático da laicidade do Estado seja reconhecido como inegociável. Infelizmente, o secularismo tem sido distorcido em nosso país. Junto com o direito à liberdade religiosa, usa-se a laicidade para dizer que não cabe ao Estado intervir nas religiões. Até aí, tudo bem. No entanto, há uma mão dupla na relação entre Estado e religiões, pois não cabe às religiões impor seus dogmas ao conjunto da sociedade. O que rege nosso país é a Constituição, não doutrinas e dogmas de um único grupo religioso. O acesso ao aborto legal e seguro para crianças e adolescentes historicamente tem sido impedido por esses grupos doutrinários e dogmáticos. Direito conquistado não pode ser negociado.

O Conanda é um colegiado formado por 14 integrantes da sociedade civil e 14 integrantes do governo. Ele é o órgão deliberativo máximo em políticas de proteção e promoção dos direitos de crianças e adolescentes no Brasil e é o responsável por fiscalizar e regulamentar políticas públicas conforme o ECA (Estatuto da Criança e Adolescente).

*Estagiário sob supervisão de Luã Marinatto



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