Neste período de polarização e radicalismo, o livro de um frade franciscano chega à lista dos mais vendidos do New York Times. A religião, inclusive o cristianismo, já motivou e ainda motiva guerras. Mas Richard Rohr reflete sobre como a espiritualidade pode ajudar em tempos de violência.
A obra me chamou a atenção pelo título. “The Tears of Things” (literalmente: “As Lágrimas das Coisas”) remete ao verso latino “lacrimae rerum”, da “Eneida”, de Virgílio. A expressão sugere que o mundo carrega um sofrimento inerente. Rohr parte dessa ideia para afirmar que as dores do mundo devem nos conduzir à compaixão.
Não é a primeira vez que o frade norte-americano, aclamado nos círculos teológicos progressistas, rompe as fronteiras da religião. O “Cristo Universal”, tida por muitos como sua obra mais relevante, também figurou na lista do New York Times. Rohr tem uma habilidade rara entre líderes religiosos: extrai da espiritualidade reflexões aplicáveis ao cotidiano — o que torna seus textos atraentes até para quem não é religioso.
O autor identifica nos profetas do Antigo Testamento um padrão emocional exemplar: eles denunciavam injustiças e consolavam os que sofriam, unindo dor e esperança. Rohr se apoia nessa dinâmica para propor um processo em três estágios para enfrentar a violência contemporânea.
O primeiro estágio é a indignação. Os profetas bíblicos não se calaram diante das injustiças — denunciaram o abuso de poder e a opressão dos fracos. Amós, por exemplo, se levantou contra os exploradores dos pobres. Suas palavras não eram simples desabafos, mas expressão do desejo de ver o mundo transformado. Inspirado nesses exemplos, Rohr mostra como a indignação saudável pode despertar em nós a urgência da mudança.
Esse convite à indignação é especialmente relevante no Brasil, onde a injustiça crônica compromete nossa sensibilidade. Indignar-se é resistir à banalização da violência. Em cidades como São Paulo e Rio de Janeiro, corpos de vítimas de homicídio compõem a paisagem urbana como algo corriqueiro. Passamos por essas cenas com pressa, desviando o olhar —não por maldade, mas por exaustão.
O segundo estágio para enfrentar a violência cotidiana é o lamento. Em uma sociedade que trata o sofrimento como algo a ser rapidamente resolvido ou evitado, o lamento precisa ser resgatado como expressão legítima da humanidade. Segundo Rohr, o choro nos humaniza e pode se tornar força transformadora.
Lembro da história de José Júnior, fundador do AfroReggae, que perdeu amigos para a violência. Foi o lamento por essas perdas —o choro transformado em ação— que o levou a criar o grupo como resposta à brutalidade nas comunidades do Rio. Por meio da arte, música e educação, passou a oferecer novas possibilidades aos jovens. O projeto tornou-se referência internacional na luta por inclusão e transformação social.
Rohr conclui apontando a compaixão como o estágio mais profundo. Inspirado em Jesus, ele recorda que “amar os inimigos” não é um clichê moralista, mas um desafio radical. Em tempos em que o ódio é tratado como virtude, a compaixão se torna um ato subversivo por romper com a lógica da violência.
Enquanto lia, lembrava de Maria da Penha, que sobreviveu a duas tentativas de feminicídio por parte do próprio marido. Sua dor virou luta por justiça —não movida por vingança, mas pelo compromisso de proteger outras mulheres. Sua atitude deu origem à Lei Maria da Penha, símbolo de resistência e compaixão ativa.
Em um mundo paralisado por guerras, crise climática e injustiças, mesmo quem não adota uma religião pode cultivar uma ética voltada ao bem comum. Quando enraizada na indignação lúcida, na dor partilhada e na compaixão concreta, essa ética se torna caminho possível para resistir ao cinismo e preservar a humanidade.