Vitória Macedo
Ser seguido por seguranças. Sentir olhares desconfiados enquanto escolhe um produto. Ter medo de ser acusado de furto ao passar pelo caixa, mesmo exibindo a nota fiscal. Para Ricardo Silvestre, 29, essas cenas são tão comuns que ele prefere evitar lojas físicas sempre que pode. “Essas situações acabam com a experiência de compra. E, pior, fazem a gente repensar o quanto isso é prejudicial também para os negócios”, diz Ricardo, publicitário e cofundador da Black Influence.
O que ele viveu não é exceção. Casos como o de Ricardo foram relatados na pesquisa “Racismo no Varejo de Beleza de Luxo”, realizada em agosto de 2024 pelo programa Afroluxo de enfrentamento ao racismo criado pelo grupo L’Oréal, um dos maiores do setor de beleza. O levantamento identificou 21 dispositivos racistas, a partir dos quais foi elaborado um Código de Defesa e Inclusão do Consumidor Negro.
Entre os dispositivos estão impedir o livre acesso e a circulação, ter apenas atendentes brancos nas lojas, serem informados do preço sem que seja perguntado e ser oferecido produto mais barato por presumir que o cliente não tem poder de compra.
O objetivo do código —que não tem efeito jurídico— é complementar as leis já existentes, com um enfoque racial para abordar o racismo no comércio, especialmente no segmento de luxo, em suas diversas formas. “A população negra é atravessada pelo racismo estrutural, que é uma questão sistêmica no Brasil. Então, para problemas sistêmicos, acreditamos em soluções sistêmicas”, diz Eduardo Paiva, diretor de Diversidade, Equidade e Inclusão do Grupo L’Oréal Brasil.
O Código de Defesa do Consumidor (CDC), publicado em 1990, regula a relação entre fornecedores de produtos e serviços e os consumidores. Embora contemple a defesa do tratamento igualitário, não aborda todas as especificidades enfrentadas pela população negra. “A ideia não é substituir o CDC, mas incluir normas que contemplem a realidade da população negra nas relações de consumo”, afirma Dione Assis, fundadora do Black Sisters in Law, grupo de advogadas negras responsável pela proposta.
Embora o Código de Defesa e Inclusão do Consumidor Negro não tenha efeito jurídico vinculativo, tem forte valor moral, segundo Assis. Para ela, o documento provoca uma mudança na forma como produtos e serviços são ofertados e pode gerar impacto econômico para empresas que não consideram esse público. As normas propostas podem ser adotadas voluntariamente pelas empresas, por meio da autorregulamentação, sem se sobrepor às leis vigentes.
Para combater as desigualdades raciais e práticas discriminatórias no mercado de luxo, o novo código traz dez normas. Entre elas, propõe a capacitação de funcionários em letramento racial e treinamentos para erradicar vieses e práticas racistas, inclusive as não verbais, como olhares julgadores ou atendimentos desdenhosos. Em relação à revista de bolsas, determina que a abordagem ocorra apenas mediante provas inequívocas e seguindo protocolos claros.
O código também impõe a obrigação de manter estoque adequado de produtos voltados para consumidores negros em estabelecimentos de beleza e exige a capacitação técnica dos funcionários para atender adequadamente às especificidades de cabelo e tom de pele desse público.
Ricardo reconhece a importância de experimentar produtos pessoalmente, mas relata dificuldades ao comprar itens de beleza, cosméticos e roupas. Essas barreiras acabam afastando consumidores como ele das lojas de luxo. “Mesmo quando você ‘dá certo’ na vida, não pode usufruir do que conquistou. Isso é cruel”, diz.
“Mais de um terço da população das classes A e B é negra, algo que nem sempre está no nosso radar”, destaca Natália Paiva, diretora executiva do Mover, uma coalizão empresarial que reúne mais de 50 empresas comprometidas com a promoção da equidade social. Além disso, 40% dos consumidores no mercado de fragrância importadas são negros.
Para Natália, o Código de Afroluxo muda a perspectiva do racismo, da falta de acesso à posição de consumidor, alguém que também movimenta a economia. “O código é importante porque trata o racismo nas relações de consumo, não apenas pela ótica da escassez, mas também pela lógica da prosperidade”, afirma.
Dione acredita que, no futuro, o próprio Código de Defesa do Consumidor poderá ser revisado para incorporar formalmente a proteção ao consumidor negro. “Se existe uma demanda escancarada e o relatório comprova a diferenciação no tratamento do consumidor negro, precisamos de previsão legislativa que contemple essa realidade”, afirma.
Para Ricardo, as empresas precisam assumir a responsabilidade de mudar o tratamento oferecido aos consumidores negros. “Se as marcas tiverem esse lugar de consciência, conseguimos resolver a maior parte dos nossos problemas”, diz.