José Lins do Rego dizia que a casa de Gilberto Freyre era o “Vaticano do Recife”. Quem fosse lá, no bairro bucólico de Apipucos, seria recebido com uma taça de conhaque de pitanga. Foi assim com Roberto Rossellini, John Dos Passos e Rubem Braga. Todos experimentaram a receita caseira criada pelo autor de “Casa-Grande e Senzala”, que faria 125 anos neste dia 15.
Os ingredientes seguem a escrita maravilhosamente rebuscada do sociólogo. A aguardente tem de ser “de cabeça”, ou seja, tirada do primeiro jorro do alambique. As pitangas têm de ser colhidas no pomar de sua casa e têm de estar bem vermelhas. Por fim, é preciso acrescentar algumas gotas de licor de violeta feito por “freiras virgens” do convento de Garanhuns.
O que torna a receita bem mais complicada: como checar tal requisito? A mais fervorosa irmã pode perfeitamente se encantar pelo filho do padeiro ou pelo engenheiro da obra ao lado. Uma coisa leva à outra. Filha de Deus, afinal. Freyre perguntava às freiras? Colecionador de cachaças, ele acrescentava raspa de canela ao drinque. E dizia que havia um pormenor secreto na receita, o qual não revelava nem no confessionário.
Rubem Braga não gostou do conhaque. Deu um gole e pediu uísque. Desfeita. Teria desconfiado do “selo de virgindade”? Virgem, na coquetelaria, denomina coqueteis sem álcool. Rossellini, por sua vez, tomou um frasco e meio. O diretor de “Roma, Cidade Aberta” tinha vindo ao Brasil com a ideia de filmar “Geografia da Fome”, livro seminal de Josué de Castro (que tanto influenciou Chico Science, que faria 59 anos neste dia 13). Corria o ano de 1958. Depois de uma estadia no Copacabana Palace, no Rio, Rossellini conheceu a nata recifense e seus lugares de luxo e folclore, inclusive a pensão de Dona Bombom, com suas moças nada-freiras, nada-virgens.
Voltou à Europa e não fez o filme. Foram muitos banquetes, como pensar em fome? Já Dos Passos tomou uma jarra do néctar de Freyre. Deliciou-se, como o cineasta italiano. Esteve aqui em três ocasiões e escreveu o livro “Brasil em Movimento”. Um trecho: “Quando me perguntam por que continuo querendo ir ao Brasil, parte é porque o país é vasto, selvagem e monstruosamente belo, mas é principalmente porque é fácil lidar com as pessoas.”
Em outra passagem, escreveu: “O maior recurso do Brasil são os brasileiros.”
O escritor, incensado por Sartre e Norman Mailer, entre outros, traiu seus ideais de quando esteve ao lado dos republicanos na Guerra Civil Espanhola e guinou para a direita. Daí, talvez, a afinidade com Freyre, apoiador da ditadura. O que não diminui a grandeza de ambos. “Manhattan Transfer” e “1919” são obras-primas. “Casa-Grande e Senzala” é monumento.
O conhaque de pitanga de Freyre demora dez anos para ficar pronto, seus elementos infusionados em álcool, adquirindo lentamente os sabores. E há a fórmula mágica, talvez anotada num caderno perdido. Daí que vamos de uma aproximação.
Caipirinha de Pitanga
60 ml de cachaça transparente
15 pitangas vermelhas
20 ml de xarope de açúcar
Macere as pitangas num copo old-fashioned. Acrescente os demais ingredientes e mexa. Ponha gelo até a borda. Decore com pitangas num palito.
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