O Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda), vinculado ao Ministério dos Direitos Humanos, quer aproveitar o fato de os brasileiros estarem com suas atenções voltadas às festas de fim de ano para levar adiante uma iniciativa que havia sido frustrada entre outubro e novembro: a aprovação de uma resolução de conteúdo nitidamente abortista, criando normativas a respeito da realização de abortos eles crianças e adolescentes vítimas de violência sexual. Na reunião desta segunda-feira, dia 23, a pauta inclui a votação de uma nova versão da resolução que o Conanda tentou aprovar sem sucesso em reuniões anteriores.
Quando da primeira tentativa de aprovar a resolução, a Gazeta do Povo apurou que a pressão pelo adiamento veio dos representantes do Poder Executivo – que aponta cerca de metade dos representantes do Conanda, enquanto os demais vêm de organizações da sociedade civil. Que um governo nitidamente abortista como o de Lula tenha se empenhado em suspender a votação se explica não por algum surto de bom senso por parte dos conselheiros, mas apenas pelo medo da repercussão negativa, após o teor da resolução ter chegado ao conhecimento de uma parcela muito maior de brasileiros. Que o assunto não seria abandonado era algo fácil de adivinhar, bem como também era previsível que quaisquer mudanças feitas no texto da resolução para torná-la mais “palatável” seriam puramente cosméticas.
As alterações feitas pelo Conanda na nova versão da resolução podem até atenuar alguns dos aspectos mais grotescos da versão anterior, mas o incentivo ao aborto segue permeando o documento
Mais uma vez, o Conanda decidiu não submeter o texto à consulta pública, ao contrário da prática comum. No entanto, a Gazeta do Povo teve acesso ao texto com exclusividade e constatou que não houve alterações substanciais. A nova versão segue promovendo ativamente a realização do aborto em crianças e adolescentes, e procura deixar os pais e responsáveis à margem de todo o processo decisório, ao contrário do que determina o Código Penal no trecho que exclui a punição nos casos de aborto feito para encerrar uma gestação decorrente de estupro. O documento estabelece um protocolo baseado na celeridade para a realização do aborto, e ainda tenta sorrateiramente ampliar possibilidades para que isso ocorra.
É verdade que, desta vez, o texto afirma que a jovem gestante deve ser informada tanto sobre a possibilidade de realizar o aborto quanto sobre a chance de levar a gestação adiante, com antecipação do parto e entrega do bebê para adoçãoe ainda afirma que as opções “devem ser oferecidas de forma alternativa, não hierarquizada e não compulsória”, que ninguém se deixe enganar: todo o teor do documento trata o aborto como a escolha mais racional a se fazer nestes casos, a ponto de se referir a ele como um “direito humano”, formulação que não existe na lei brasileira (que sempre trata o aborto como crime, embora não o puna em certos casos), e que a Corte Interamericana de Direitos Humanos acabou de rejeitar no julgamento do “caso Beatriz”.
Se na versão anterior da resolução os pais e responsáveis eram completamente dispensáveis, agora os responsáveis pelo atendimento devem perguntar à gestante se ela gostaria que eles acompanhassem o processo, mas deixa implícito que a vontade da criança e do adolescente deve prevalecer em qualquer situação. Caso a menina deseje o aborto, mas seus pais se oponham, a determinação do Conanda levará a situações de desobediência flagrante à lei, pois o artigo 128 do Código Penal só não pune o aborto em caso de gravidez resultante de violência sexual se ele “é precedida de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal” – o termo “incapaz” indica, entre outros grupos, as menores de 16 anos, que o artigo 3º do Código Civil descreve como “absolutamente incapazes”, enquanto adolescentes de 16 a 18 anos são relativamente incapazes, de acordo com o artigo 4º. Ressalte-se, ainda, que, em caso de disputa judicial motivada por divergência entre a gestante e seus pais ou responsáveis, o Conanda deixa claro que “não há previsão legal para a figura de curadoria do feto”.
Em uma insistência macabra, a versão mais recente da resolução mantém a previsão do aborto mesmo depois das 22 semanas de gestação, o limiar a partir do qual o feto passa a ter chance de sobrevivência fora do útero. Por mais que a lei brasileira de fato não preveja uma idade gestacional limite para o aborto sem punição, entidades médicas e a melhor literatura científica sobre o assunto defendem a antecipação do parto como a melhor opção também para a gestante. Também permaneceram as críticas à objeção de consciência – essa, sim, um verdadeiro “direito humano” – por parte de profissionais da área médica, e a tentativa de forçar instituições de saúde com um ética pró-vida a ter profissionais dispostos a fazer abortos, ao afirmar que a objeção de consciência é um direito que “não pode ser alegado por instituições que prestam serviços de saúde”.
Portanto, continua inaceitável o teor da versão mais recente da resolução que o Conanda pretende votar nesta segunda-feira. As mudanças feitas podem até atenuar alguns dos aspectos mais grotescos da versão anterior, mas não são capazes de torná-la um documento neutro do ponto de vista moral. O incentivo ao aborto segue permeando o documento, que não esconde nem mesmo a tentativa de ampliar as hipóteses do erroneamente chamado “aborto legal”, ao falar em “gestação decorrente de violência sexual, risco de vida para a pessoa gestante e/ou gestação de fetos anencéfalos e incompatíveis com a vida” (destaque nosso), sendo que a decisão de 2012 do STF é clara a respeito de sua aplicação apenas nos casos de anencefalia, e não nos de outras doenças como a Síndrome de Edwards. O repúdio demonstrado pela sociedade brasileira quando da primeira tentativa de votar a resolução continua justificado hoje, e a mobilização pela rejeição do texto não pode recuar nem um milímetro.