Por: Maílson da Nóbrega
Ao contrário do que muitos brasileiros creem, o Orçamento Geral da União (OGU) não é “autorizativo”. A lei mais importante do país não pode ter suas dotações alteradas pelo Executivo (Secretaria do Tesouro Nacional). No entanto, economistas, cientistas políticos, jornalistas, operadores do mercado financeiro e até parlamentares —pasme o leitor— apoiam essa regra. Mais do que isso, a maioria demanda, com frequência, que o governo realize contingenciamentos e bloqueios, os quais suspendem ou revogam dotações orçamentárias. Trata-se de enorme aberração institucional.
Já foi pior. O país violava um dos princípios básicos do Orçamento, o da unicidade (um só orçamento). Havia pelo menos três: o OGU, o Orçamento da Previdência e o Orçamento Monetário (OM). Somente o primeiro era aprovado pelo Congresso Nacional, assim desprezando-se outro princípio, o da legitimidade (aprovação pelos representantes do povo).
Reformas realizadas entre 1986 e 1988 extinguiram o OM e três outras distorções: 1 – a “conta movimento”, que conferia ao Banco do Brasil acesso ilimitado e gratuito a recursos públicos, para concessão de empréstimos; 2 – a atuação do Banco Central como banco de desenvolvimento, oferecendo crédito via repasses e financiamentos a bancos; e 3 – o poder do Conselho Monetário Nacional (lei complementar 12, de 1971) de autorizar a expansão da dívida pública, quando deveria ser o Congresso. Depois, o orçamento da Previdência passou a integrar o OGU.
Ainda existem duas outras distorções: 1 – um orçamento paralelo no Poder Judiciário, que se nutre de custas judiciais e cartorárias com as respectivas despesas aprovadas por juízes e não pelo Congresso; 2 – o volume escandaloso de emendas ao OGU para atender objetivos pessoais dos parlamentares, as quais representam 25% dos gastos discricionários da União. Nos países ricos, esse percentual é inferior a 1%, salvo nos EUA (2,3%).
Nas nações desenvolvidas, a execução orçamentária é impositiva. Não se fala em orçamento autorizativo. A crise europeia, iniciada em 2009, é um claro exemplo. Vários países se viram na situação de não poder pagar a dívida pública. Isso foi superado com o apoio da Comissão Europeia, do Banco Central Europeu e do FMI. Como é normal nessas situações, a ação foi condicionada à realização de ajustes fiscais baseados em cortes de gastos. Sua implementação exigiu a prévia revisão do orçamento, sob o crivo e a aprovação dos Parlamentos.
Aqui a realização de cortes, quando necessários, são efetuados sem audiência do Congresso. O desprezo pela legitimidade é flagrante. Além disso, a medida viola o artigo 167, parágrafo 8º, da Constituição, segundo o qual “a lei orçamentária anual não conterá dispositivo estranho à previsão da receita e à fixação da despesa (grifos meus)”. Portanto, o gasto é fixo, impositivo. Não há, logo, amparo constitucional para a forma como se procede à contenção fiscal, mesmo que de certa forma as medidas estejam previstas no artigo 9º da Lei de Responsabilidade Fiscal. É possível afirmar que a norma padece de inconstitucionalidade.
Além da ilegitimidade dos cortes efetuados pela Secretaria do Tesouro Nacional, a aberração acarreta sérios problemas. Suponha o caso de uma empresa de construção que ganhou uma concorrência para construir obra rodoviária. Deslocou máquinas, equipamentos, engenheiros e mestres de obra para o local. No meio da tarefa, as respectivas dotações são suspensas ou canceladas. Imagine o custo para a empresa e o país. É provável que o procedimento explique boa parte das obras paradas.
Cortes de gastos precisam ser aprovados pelo Congresso. É mais demorado, mas é a forma correta e legítima. As decisões observariam um método expedito. Seria possível discutir as respectivas propostas, evitando as distorções atuais. Por essas e outras, é preciso rever e modernizar o processo orçamentário, regulado pela ultrapassada lei 4.320, de 1964.
TENDÊNCIAS / DEBATES
Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo.