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09/05/2025

Francisco foi um líder global diante da virada à direita – 21/04/2025 – Cotidiano

Rodrigo Toniol

Francisco morreu depois da Páscoa. O papa que anunciou esperança mesmo diante do sofrimento partiu um dia após celebrar, pela última vez, a ressurreição. Essa coincidência carrega um peso. Sua morte não encerra apenas um pontificado, mas marca o fim de um tempo em que o Vaticano teve um papa que ousou se dirigir, com clareza, ao mundo.

Jorge Mario Bergoglio assumiu o trono de Pedro em 2013, quando a Igreja Católica atravessava uma de suas maiores crises morais e institucionais. Sua eleição, a primeira vinda do chamado Sul Global, foi um gesto de abertura. Seu estilo austero, os gestos junto aos pobres, sua atenção às periferias, tudo indicava que algo mudaria.

As reformas internas, no entanto, tropeçaram em resistências antigas. Francisco não conseguiu alterar pilares conservadores da igreja: o celibato clerical, o veto à ordenação de mulheres, o silêncio institucional sobre homossexuais. E mesmo os esforços mais simbólicos —como a tentativa de limitar o poder da Opus Dei— esbarraram em alianças políticas e resistências curiais.

Mas foi para fora da Igreja que seu papado mais falou. Francisco entendeu, como poucos de seus antecessores, que os dilemas contemporâneos exigem posicionamentos éticos nítidos. Ele denunciou a desigualdade social como violência, alertou para os riscos do colapso ambiental, acolheu refugiados e migrantes quando governos os rejeitavam, expôs os vícios do mercado financeiro e apontou a insensibilidade do mundo diante da dor dos pobres. Não foi neutro nem cauteloso. Foi uma voz clara contra o autoritarismo, a xenofobia e o negacionismo.

Sua insistência em lembrar que os migrantes não são números, mas rostos, histórias e vidas incomodava os mesmos que hoje defendem muros, deportações e nacionalismos religiosos. Em lugar do medo, ele pregava hospitalidade. Em vez de proteger fronteiras, buscava proteger vidas.

Nas últimas semanas, mesmo com a saúde frágil, Francisco continuava se posicionando. Recebeu J.D. Vance, o vice católico de Donald Trump, um dia antes de morrer. A imagem de um papa exausto ao lado do símbolo mais recente da nova direita americana pode sugerir uma passagem de bastão. Mas seria um erro de leitura.

Francisco não representava o passado, e sim um projeto ético em disputa. O contraste entre ambos não poderia ser maior: de um lado, o papa que acolheu imigrantes na Praça de São Pedro e lavou os pés de refugiados muçulmanos; do outro, a voz de uma política cristã nacionalista que busca endurecer fronteiras e valores. Sua presença, até o fim, foi um contraponto à brutalidade que cresce em tantas partes do mundo.

Em tempos de guerras naturalizadas, democracias desidratadas e políticas de exclusão legitimadas pelo voto, Francisco manteve firme a crítica à indiferença. Enfrentou governos, incomodou empresários, confrontou líderes religiosos, sempre lembrando que o sofrimento humano não pode ser ignorado em nome da ordem, do lucro ou da tradição.

Seu legado dentro da Igreja será ambíguo, como são todos os legados em instituições milenares. Mas fora dela, Francisco seguirá como referência. Um líder que, sem abandonar a linguagem da fé, soube falar à política, à economia, à ciência e à cultura. Sua figura pública reabilitou a ideia de compaixão como horizonte político.

Ao morrer depois da Páscoa, Francisco deixou viva uma mensagem de coerência. A fé que pregava não era escudo, mas chamada à responsabilidade. Seu papado foi menos sobre dogmas e mais sobre enfrentar as dores do tempo presente.



Fonte: Folha UOL

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